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Um pensador de plantão – desses que andam por aí enxergando
guampa em cabeça de cavalo e atropelando moinhos com a lança em
riste -- certo dia saiu com esta: “ O valor de um homem não se mede
pelos amigos que tem, mas pelos inimigos que faz.”
Não vejo dessa forma. E me entristeço quando encontro pessoas
esclarecidas, detentoras de razoável cultura, com capacidade e
oportunidade de realizar grandes coisas, erguendo a espada contra
quem não se submete aos seus caprichos, numa demonstração clara de
desconhecimento dos limites de seu poder.
Por isso, prefiro sempre fazer referência aos amigos que a
vida me reservou. Aos outros,
digo como aprendi com o Quintana -- o do Alegrete – “Eles passarão,
eu passarinho!”
Um desses amigos, dos tantos que adoçaram meu coração ao
largo dos anos, se chama Jarbas Pessano. Conhecemo-nos desde que
éramos guris, aqui em Uruguaiana. Toda vez que vou à capital do
Estado, onde reside, me espera com o mate pronto e algum recorte de
jornal, onde se lê um poema, ou algum texto inteligente. Cozinheiro
de mão cheia e panela farta, está preparando o lançamento de um
livro onde ensina os leigos a melhor aproveitar a carne de gado
totalmente. O nome da obra diz tudo: “Da Língua ao Rabo”.
Jarbas vive em Porto Alegre há muitos anos. Seu mate
espumoso (até hoje ceva o mate com erva escolhida nas bancas do
Mercado Público), a comida com tempero sem igual, a hospitalidade
levada aqui da fronteira e a cumplicidade da Maria Teresa, fizeram,
desde muito tempo, de sua casa ali na Rua da República, o lugar de
encontro de artistas ligados à música e à poesia. Em sua casa foi
escrita uma página da história da gestação da Califórnia da Canção
Nativa. Pois, a meu pedido, o Binha – seu apelido de guri – reuniu
para uma noitada memorável, os responsáveis pelo que de melhor se
fazia na arte regional. Estavam presentes: Glaucus Saraiva, Telmo
Freitas, Glênio Fagundes, Paulo Fagundes, Ribas, Noel Guarani, Jayme
Caetano Braun, entre outros. Além dos uruguaianenses que viajaram
comigo.
Nessa noite eles nos encantaram com declamações, cantorias,
payadas e trovas de improviso entre Jayme Caetano Braun e Telmo
Freitas. E ficaram sabendo da realização, ainda naquele ano, da
primeira Califórnia de Canção Nativa.
A exposição da ideia e a aprovação de todos foi o grito de
partida para aquela largada numa cancha sem trilhos nem andarivel.
Anos depois, Jarbas se arranchou na rua Thomas Flores, quase
esquina da Vasco da Gama, no Bonfim. Foi ali que, em uma das minhas
visitas a Porto Alegre, conheci o poeta Antônio Augusto Ferreira.
Falamos sobre a Califórnia e o incentivei a participar do
festival. Em 1980 ele concorreu pela vez primeira, tendo como
parceiro Everton Ferreira, com três canções. Antes da noite final,
Glaucus Saraiva me comentou: o nome da vencedora não sei, mas o
autor eu sei – é Antônio Augusto Ferreira!
Tal a beleza das três
composições de sua marca. O Tocaio recebeu a “Calhandra de Ouro”
pelo “Veterano”.
Mas minha admiração pelo Antônio Augusto não se restringe aos
belíssimos poemas que escrevia ou às iluminadas letras do grande
número de canções que compôs, mas por haver conhecido o ser humano
admirável que era, e ter sido honrado com sua amizade.
Tive muitas oportunidades de estar com ele. Se não foram
frequentes, foram intensas e proveitosas. Participamos juntos de
concursos, festivais, palestras, debates, feiras e lançamentos de
livros. Estive em suas marcações, no Rincão do Inferno; vi seu filho
Mauro Ferreira crescer para o ofício da poesia e tornar-se o melhor
letrista da música campeira (recebeu a Calhandra de Ouro por quatro
vezes); hospedou-me em sua casa; deu-me a honra de prefaciar um
livro seu; propôs minha admissão para a Academia Rio-grandense de
Letras e presenteou-me com uma cuia, cultivada por ele, e por ele
trabalhada com capricho. Manuseada em meu mate de todas as manhãs é
minha confidente nesse ritual de sorver reminiscências no espírito
das coisas.
Faz bem à alma lembrar esses amigos, que, como muitos
outros que a vida me deu, são parte de uma querência onde não se
conhece a tristeza.
LEMBRANDO MARTIN FIERRO
Dios formó lindas las flores,
Le dió claridá a
la luz,
Delicadas como son,
Juerza en su carrera al viento,
Les dió toda perfección
Le dió vida y movimiento
Y quanto El era capaz.
Dende la águila al gusano,
Pero al hombre le dió más
Pero más le dió al cristiano
Cuando le dió el corazón.
Al darle el
entendimiento.
Jose Hernandez
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